Lembra com preocupação quando Osvaldo ainda era vivo. Ele era vendedor de frutas e mantinha um pequeno negócio próximo da vila.  Um homem exemplar. Por conta de seu zelo com a mercadoria sua clientela fixa  tornou-se cada vez maior. No caminho de casa ele parava para fazer uma fezinha na loteria. Osvaldo sempre foi persistente, dizia à esposa que acreditava na sorte, e assim consumia a maior fatia de seu ganho. Noemia não se queixava. Ela não se queixava de nada. Professora,  dona de um salário razoável já nessa época se dedicava a fazer o bico na imobiliária do Ramalho como corretora plantonista e ainda se dizia abençoada, pois seu Osvaldo era um marido muito bom, e dinheiro e saúde não faltavam, Graças a Deus!

Noemia gosta que lhe conheçam o sobrenome do qual se orgulha. Noemia Tavares de Lima,  Tavares de seu pai que Deus o tenha, e Lima do esposo,  que descanse  em paz!

Boa, uma mulher boa que só vendo! Um coração tão bom tem a minha Noemia! Era assim que Osvaldo se referia à esposa. Discutiam às vezes, ele porque apostava na loteria, ela porque falava demais.

O marido tanto insistiu que acabou por acertar numa fezinha, o que lhe rendeu um bom dinheiro. Noêmia depositou tudo na caderneta de poupança e não permitia que o marido efetuasse saques dizendo que era dinheiro de férias. Mas não saiam de férias. Osvaldo morreu pouco tempo depois vitima de uma infecção causada por uma bactéria que ele contraiu não se sabe de quem e nem de onde.

Noemia sofreu muito a ausência de seu companheiro, foi quando descobriu a música, o canto e o videokê. E foi aos poucos se tornando uma cantora, participou de concursos, ganhou uns e perdeu outros tantos. Hoje Noemix alimenta o espírito de Noêmia.

A campainha não tocou uma única vez. 
Talvez tenham passado apenas dias, talvez tenha completado um mês. A moça deitada, horas e horas do vazio mais repleto que já teve. As sensações ficam indizíveis e nada do que sucedeu fora daquele acontecimento necessitam ser mencionadas.
Então, certo dia, ouvindo a chuva lá fora ela achou que era apropriado verificar sua voz depois de tanto tempo. “A”, disse com uma voz embriagada e totalmente desconhecida por ela mesma, até achou por um momento que a vogal fora imaginada e apenas um ruído de ar tivesse saído de fato. Tentou lembrar de alguma musica, achou que o momento seria digno, porém o pensamento acabou com qualquer possibilidade e apenas veio-lhe um grito.
Aquele foi talvez o grito mais longo que ela deu em toda a vida, mais patético e justificável talvez também. Saiu como o derradeiro passo de um equilibrista na corda bamba minutos antes do vôo forçado em queda livre. 
Ela escutava a própria voz em grito distante, ela escutava a voz da mãe, a voz do pai, a voz de crianças, a voz dos vizinhos, a voz de homens, a voz de mulheres, era um grito apessoal se é que isso pode ser tido como algo que exista. E no mais, ela já não teve controle sobre o fim daquilo que seria sua voz, seu fôlego, era escuro e ainda escutava os timbres e um pouco de eco também. 
Depois da escuridão sim, a campainha tocou.

Sob a coroa de louros se estende o homem prodígio. Crescera na pobreza de espírito; o pai, de bolsos cheios e coração vazio, não tinha disposição para ouvir-lhe a imaginação precoce. Dava-lhe um maço de notas ao colo, que mais eram o preço do sossego. Para o menino, o pai era o dono do mundo e, como filho, mais valia que herdasse tudo aquilo, o nariz empinado e os gestos categóricos. Valia que os imitasse, o dedo em riste no espelho, o cenho franzido e o olhar penetrante. Com a voz modulando mandatos, cresceu maior que os empregados e tutores, as mãos pousadas nos bolsos e os pés folgados nos chinelos, enquanto a boca lhes chibatava a condição de humildade, à imagem e semelhança do imperador Júlio César, o pai.
Natural que escolhesse o dinheiro como profissão, estudando do bom e do melhor, sob as rédeas longas da família. A mãe não trabalhava, mas em casa não ficava, a troco de perda de tempo. Dispunha de um ou dois criados e saía pela cidade, sem hora para voltar.
E Júlio ergueu-se assim, meio filho, meio sozinho, razão pela qual chegar à própria casa, vazia da esposa e dos filhos era mais que um martírio. Queria virar-se do avesso, explodir-se em três júlios para os trazerem de volta imediatamente. Disso não tinha controle, e modelo não era, para exigir que estivessem com ele à sua sombra, aos seus horários e à sua vontade. Mas bem que gostaria.

Nem precisava falar mais nada. Tinha matado a mãe e pronto. Eu, que não queria saber de mais encrenca pro meu lado, dei as costas praquela maluca e fui saindo de fininho.
- Aonde você vai?
- To vazando, falei, abrindo a porta do quarto.
- Não pode ir embora! Não tem como voltar para casa!
- Volto nem que seja a pé, parei pra dizer. - Se você matou a velha ou não, isto é problema seu. Eu é que não fico aqui nem a pau! disse, já no corredor.
– Espere.
Fingi que não ouvi e continuei andando. Quando tava no meio da sala, Leonor pulou nas minhas costas, me deu uma gravata e, com o outro braço, começou a me bater na cabeça e na nuca.
- Você não pode me deixar sozinha, canalha! Não pode, não pode! berrava na minha orelha.
Como Leonor era magricela, aguentei o tranco e continuei em pé até conseguir tirar ela de cima de mim. Tentei segurar seus braços, mas ela era ligeira e escapava sempre. Como não parava de me bater, tive que acabar logo com aquilo.
- Para, assassina! gritei e empurrei ela com força.
Leonor bambeou, dando uns três passos para trás, e caiu de costas, quase batendo a cabeça na parede. Um quadro caiu em cima dela e tombou no seu peito.
- Leonor, chamei. – Leonor.
Minhas pernas tremiam e eu só pensava no tamanho da merda que tinha feito. Não sabia se pedia ajuda - os vizinhos já deviam ter acordado por causa do barraco que Leonor tinha dado - ou vazava antes que alguém aparecesse. Com um puta cagaço, desci pela escada pensando na desculpa que daria na portaria pra sair. O porteiro demorou pra abrir o portão, mas não perguntou nada.
Na rua, depois de correr por umas dez quadras, pensei em voltar quando lembrei de Leonor estirada no chão. Cheguei até a acreditar que ela não tinha mesmo matado a mãe. Mas aquilo não era problema meu. Culpada ou não, Leonor já devia estar fazendo companhia à velha e minha maior preocupação, além de sumir do mapa por uns tempos, era como contar toda aquela fita à polícia, caso me encontrassem algum dia.
Os dias passavam lentos e rarefeitos, o tempo agora estava muito seco, mas ela ainda não sentia a secura. Experimentar o controle do sentir o que a sua volta acontece não era algo que ela conseguia, incontrolável era os excessos de vida que ela guardava nas gavetas, nos armários, nos cadernos – não podia sentir o tempo seco do momento porque há muito estava encharcada. 
Deitada no chão tentava abolir qualquer pensamento, esvaziar-se em teoria. As teorias sempre tão numéricas confundindo-a vertiginosamente. Já completava duas semanas do dia em que se deitou para dormir sem programar o despertador e não saiu mais de casa. O telefone tocou algumas poucas vezes nesse período, mais precisamente nos primeiros dias. No celular recebia algumas mensagens ainda. Sua caixa de e-mail, ela sabia, estava lotada, embora evitasse conferir para não correr o risco de responder um se quer. A campainha não tocará nenhuma vez.
Deitado no chão do quarto ela jogava. Jogava contra ninguém, de si para consigo e assim, única jogadora de um jogo, era quase impossível estabelecer qualquer competição... por tanto os dias iam passando lentos e rarefeitos e ela pensou que talvez fosse bom abrir pelo menos a janela.
Depois que Leonor me falou aquilo, parece que toda a fita tava rolando na minha frente naquela hora. Ela segurava a mãe pelo pescoço dentro da banheira e a velha se debatia como um peixe fisgado.
- Ela morreu naquela banheira, falei, apontando pro lado do banheiro.
- Como você sabe? perguntou, parando de chorar.
- Foi você que apagou a velha.
- Não!
- Apagou, sim, eu sei.
- Não matei! Ela me deu uma bofetada no rosto só porque peguei os sais de banho errado.
- E você matou ela só por causa disso.
- Eu não matei, eu não matei aquela bruxa! Eu fui embora e ela ficou sozinha. Depois, ela teve um troço e morreu porque não tinha ninguém pra ajudá-la.
Leonor segurou a cabeça e se jogou na cama, meio encolhida como uma criança, com o olho fechado.
– Eu falei: “Foi a última vez que a senhora me bateu” e saí. Quando voltei, ela estava morta. Não foi minha culpa. Por que acha que mataria minha mãe? Você não sabe de nada. Não sabe o que é ter uma mãe que lhe despreza, que lhe tratou a vida inteira como uma criança retardada e não poder fazer nada. Nem ter uma vida normal. Ela sempre me odiou.
Não era nada daquilo, por mais que a intenção fosse o movimento, mesmo andando tudo era estático. Caminhando o trajeto da agência até a empresa, cada passo sem força e automático era uma digital impressa da sua vida, não via nada nas ruas. Entrou na sua sala, esperou seu chefe chegar e passou os acontecimentos para ele, omitiu seus pensamentos e algumas atitudes, engrandeceu outras e criou um pouco além da história, sabia que ele resolveria tudo com um telefonema – ainda assim havia tentando o esforço de se fazer útil. Voltou para sua rotina, em frente à telinha brilhante e quadrada seus pensamentos percorriam milhas enquanto o corpo cumpria movimentos automáticos e caminhos muito bem pré-determinados. O último pensamento, já no ônibus de regresso para casa, ela registrou na contracapa do livro e deixou no banco quando desembarcou. Alguns dias depois, em algum jornal de grande circulação, apareceria uma nota de abandono de emprego.
Ela não sabia o que dizer. Não sabia se devia contar a verdade ou se inventava uma história qualquer apenas para não deixá-lo sem resposta. Mas o fato é que Leonor já estava completamente desnorteada, incapaz de dizer qualquer coisa que não fosse a verdade.
- Estou com medo, respondeu.
- Medo de quê, porra?! ele gritou, irritado.
- Da minha mãe, berrou, descontrolada.
- Mas ela não morreu, caramba?
Fez que sim com a cabeça, quase sem forças para continuar em pé.
- E então? Não precisa ter medo, pô!
Leonor enxugou as lágrimas que escorriam pelo rosto e engoliu um soluço antes de continuar:
- Preciso, sim. Desde que morreu, continuo ouvindo mamãe me chamar. Sei que ainda está aqui.
- Você tá me zoando?
- Não, não estou.
Ele segurou os cabelos, pensativo, andou pelo quarto, observando os cantos.
- Você só tá nervosa porque faz pouco tempo que ela morreu, arriscou uma explicação lógica para o medo dela.
- Acha que não cheguei a pensar nisso? disse com um riso quase de ironia. - Não é verdade, ela ainda está aqui. Acabei de ouvi-la me chamar, por isso pedi para você vir aqui.
- Você é doida! Quer dizer que faz dois meses que ela tem aparecido?
- Ela morreu duas semanas atrás. Aqui em casa.
No corredor, Leonor segurou firme a minha mão; a dela tava tão fria que, se não tremesse tanto, diria que era a de um defunto. Ela ia na frente enquanto eu tentava imaginar seu corpo debaixo daquela camisola de vovó que usava.
Chegando no quarto, ela fechou a porta devagar como se tivesse mais alguém na casa que pudesse nos pegar em flagrante. O quarto era igual ao que eu tava, mas tinha uma penteadeira velha, lotada de perfumes e uma caixa com mais remédios. Eu não podia perder tempo e cheguei junto.
- Se você não fizesse isso, eu mesmo teria feito, falei, pegando na cintura dela.
- Sai! O que você está fazendo? perguntou, me empurrando.
- Ué, o quê você queria que eu fizesse, gata.
- Espera! Não é o que está pensando, disse, se encostando no armário.
- Como assim? falei, cruzando os braços, meio puto. - Você vai até o meu quarto, me chama pra ficar aqui e diz que não é o que tô pensando. Para com isso, Leonor!
- Não chega perto de mim se não quebro a sua cabeça, ameaçou, pegando o abajur de cima do criado-mudo.
- Tá bom, tá bom. Mas por quê me chamou aqui, então, pô?
Ela fez uma careta e começou a chorar.

O Bigode é um modesto e respeitado balconista. Veio do interior da Paraíba com a promessa de um Plano Collor promissor e conseguiu depois de se estabacar na construção, arrumar um emprego num bar. Depois, abriu o seu próprio estabelecimento com muito suor e com a ajuda de um sócio na Bela Vista, na suja e escura Bela Vista. O bar ia bem mais num assalto, mataram o sócio do Bigode com três balas no peito e ele não teve outro jeito a não ser fechar o bar. Hoje serve o balcão da padaria onde atende os mais estranhos clientes e alguns pacientes sentimentais que acabam se tornando amigos do nordestino. Ele conta alguns causos e o pessoal entre um gole e outro, esquece dos problemas e se encanta com o carisma. Isso aconteceu com a Sandrinha que encontrou no balcão, um amigo.

Está abaixando a poeira quando se aproxima dele uma moça altiva, livro saindo para fora da bolsa, ar faiscante e olhar firme, crescendo até ele. Tem gestos sólidos, pisadas duras e uma casca de gelo: já bem perto vê traços de tristeza e desamparo, talvez solidão. Sem aliança no dedo e sem vida na expressão, o jeito enfurecido era sinal de fumaça ou baixaria, como os anos de agência poderiam contar.
Foi vomitando a culpa do banco, ao que Júlio deixava correr. Mais fácil pensar àquela altura era que todos eles tinham razão. Impaciência de cliente era dose diária na carreira e um prego na cruz. Mas a moça tinha a sua beleza: mantinha o queixo erguido embora a alma estivesse notadamente combalida. Falava grosso com sua voz fina, dava indícios de plantar granadas da bolsa ou pisotear o velhinho que se adiantava à ela na fila. Cercado de regras, burocracia e seguranças, Júlio por um instante considerou atrevimento o que ela foi capaz de lhe dizer, sendo o maior responsável pela agência.
– Não. O senhor vai me atender agora, porque eu estou tentando resolver esse problema há um bom tempo! E como o assunto é de cobranças indevidas, creio que a situação pode ficar bem ruim para o senhor.
Júlio sorri. Ofereceu assento e cafezinho para a moça, talvez uma água gelada. Olhou-a com ternura; talvez estivesse perdida no mundo, ladrando feroz como poodle de madame. Seu instinto masculino se acendeu, mais viril que paternal, mais traste que humano e mais adúltero que bom marido, o que o retrato sobre a mesa desmentia. Mal desse uma entrada e Júlio se disporia a uma cantada leve e rasteira que o seu diabinho lhe soprava na orelha. E olhava a moça de longe, enquanto atendia o velhinho da fila.
E a moça esperando, bufando. E lendo. Arrancara da bolsa qualquer coisa que mal poderia compreender. Mais olhava para os lados, balançava a cabeça, movia pés e mãos em frenesi. Eram indícios de baixaria, que Júlio também pensava em contornar. Até que ela se levanta. Decidida, de livro em punho, bolsa armada, antes que pudesse atendê-la.
– Senhor – disse, aguardando o desvio de atenção que ele dispensava ao atendimento de outra cliente – creio que o péssimo atendimento dessa agência me obriga a recorrer a outros meios para solucionar meu problema. Passe bem.
Foi até o banco e depois das repetidas intermináveis transferências conseguiu ficar cara a cara com o gerente. Júlio foi polido e mecânico como um funcionário padrão em atendimento e deixou-a esperando pela sua vez. Ela foi petulante como até então não se percebera, mas esperou. Esperou talvez porque o gerente havia sido bem profissional, coisa que poucas vezes acontecia quando era atendida por homens, ou esperou por simples estagnação, ou ainda esperou porque realmente precisava ser atendida. “Eu não sei por que estou esperando”. Em princípio entorpecida pelo excesso de distanciamento humano do ambiente, jogada na cadeira, com olhar vago, divagou na espera, até que se deu conta de seu total abandono e achando-se “pouco gente” endireitou-se, como se envergasse a vida junto com a coluna na cadeira, puxou um livro da bolsa e pôs-se a ler. Inquietou-se, não com a espera, mas com a própria vida. Achou que talvez não demorasse muito para ser atendida, visto que o gerente parecia realmente preocupado em atender os clientes, inquietou-se ainda mais, talvez ela não quisesse vencer novamente pela paciência, talvez pelos pensamentos a frase mais concreta fosse “não quero continuar esperando e ser atendida como sempre”.
– Senhor – disse, aguardando o desvio de atenção que ele dispensava ao atendimento de outra cliente – creio que o péssimo atendimento dessa agência me obriga a recorrer a outros meios para solucionar meu problema. Passe bem.
Virou-se e saiu a passos largos da vista do gerente, torcendo para que ele na sua polidez não resolvesse convencê-la a aguardar mais um momento.
Era esse o desejo de Sandrinha quando chegou na cidade grande. Mesmo sem ter onde morar e, obviamente sem dinheiro, tentou de tudo durante dois anos. Morou na rua, fugiu da polícia, usou crack, maconha e cheirava cola de sapateiro o dia todo pra esquecer a fome. Sorte foi ter o corpo perfeito, que lhe serviu de ganha-pão, e por outro lado, foi honrado por tanto trabalho. Hoje não esta mais na rua. Tem trabalho direito de manicure no salão da Dona Joana D’arc e mora de aluguel num dois cômodos ajeitadinho nos fundos da casa da patroa. Quando está em casa não faz muita coisa de diferente não. Descansa, cozinha, faz faxina e paquera o filho da espanhola que até agora não percebeu o cortejo dela, ou não quer perceber. A janela do quarto do rapaz fica no corredor que dá acesso a escada que leva a casa da Sandrinha na parte de cima do imóvel. Quando Eça desce as escadas em direção ao portão, necessariamente passa em frente a janela. Noutro dia ela jogou um bilhete escrito num papel amassado: “Queria falar com você”. Mas o rapaz até hoje não falou com ela. Às sextas-feiras Sandrinha se dá ao luxo de ir ao bar tomar umas cervejas e cantar no caraoquê. É lá que se libera das “buchas”, se diverte e dá uns beijos. E dali pro motel, sempre. Mas gosta mesmo é de papear com o Bigode na padaria. Dizem que ele é um cara muito bem informado e que sabe de tudo que acontece na região.
Fiquei um tempão rolando na cama sem pegar no sono. Além da casa ser gelada pra caramba, fiquei pensando que, pra um cara que nem eu, conhecer uma mulher como Leonor era uma grande chance de arrumar a vida.
“Tudo isso pode ser seu. Tudo isso pode ser seu”, parecia ouvir uma voz.
Como não conseguia relaxar, fui tomar um banho. O banheiro, como o resto do apartamento, era bem grande. A banheira ficava do lado da porta. No fundo ainda tinha outro chuveiro cercado por uma cortina plástica. Tive que me conformar em tomar a ducha e não experimentar a banheira, como Leonor tinha pedido.
Depois do banho, resolvi escovar os dentes por causa do bafo de cerveja. Abri a porta espelhada do armarinho e vi três caixas de remédios, uma delas de tarja-preta, o que me encanou um pouco.
Peguei a pasta de dente e, assim que fechei o espelho, vi um vulto atrás de mim. Me virei assustado, mas não vi nada. Um vento mais forte bateu na janela e um ar gelado tomou conta do banheiro. Joguei a pasta na pia e voltei rapidinho pro quarto onde me enfiei embaixo da coberta e continuei sem pregar o olho. Já que daquele mato não saía coelho, pelo menos naquele dia, pensei que seria melhor acordar a Leonor e falar que eu tava vazando, mesmo que fosse andando pra casa. Uns dez minutos depois de ter deitado, vi a luz do corredor acender e, em seguida, a batida na porta.
- Entra.
- Você estava dormindo?, perguntou Leonor, abrindo a porta, com um olho esbugalhado..
- Não. O quê foi?
- Você pode vir comigo?
Esperou seu chefe cruzar pela sua mesa em direção a sala dele, largou o telefone no gancho, levantou-se esquivamente e foi ao banheiro. Tentou chorar, não conseguiu. Ficou com a sensação estranha no peito, sem saber resumir em explicações. Havia alterado sua voz ainda a pouco no telefone, talvez não conseguisse suportar perceber-se impostando alguma coisa. O Banco prometia uma resolução antes do horário de almoço dela, naquele mesmo dia, ela esperaria paciente como sempre. E ela precisava ir comprar o almoço e nem sabia decidir o que tinha vontade de almoçar, ela precisava se posicionar na vida e nem sabia o que tinha vontade de viver. “Se eu não voltasse para casa à noite, quem se importaria?” E ela ia pensando em ramificações infindas, nenhuma com sentido prático ligado ao problema do Banco, mas tudo parecia sim uma coisa só. Ela queria alguma coisa imprecisa, mas no momento a única certeza era que precisava sair do banheiro e voltar para a mesa com a cara mais saudável possível.
Ainda na noite anterior recebeu uma ligação de Leonor desmarcando, aos sussurros, o bate papo que teriam, disse que depois explicava, que tinha conhecido alguém. Só isso.

Com isso teria então mais tempo para cuidar de suas coisas.

Noemia voltou do cabelereiro com cabelos curtos num tom castanho suave bem penteados, com batom rosado delineando seus lábios finos, o que lhe conferia aparência sóbria e certa confiabilidade.

A tarde enquanto cantarolava com voz de Noemix ouviu a campainha e ficou surpresa ao ver Magali toda produzida jorrando um sorriso enorme de cor vermelha para cima da anfitriã “oi Noeeemiááá!”. Com outro sorriso cor de rosa Noemia a recebeu e a convidou para um café “De passagem por aqui? Entra e toma um café fresquinho comigo”. Magali desfilou até a porta de entrada sobre o salto doze mal cabendo dentro do vestido branco quase transparente deixando um rastro de Chanel 5 em plena três horas da tarde. Noemia ia logo atrás e teve tempo de olhar atentamente a amiga que parecia ter remoçado uns dez anos, tinha as curvas mais acentuadas e tudo nela exuberava num rebolado quase vulgar. Na cozinha azulejada ambas sentaram e Magali disse que não estava de passagem, tinha ido especificamente falar com Noemia “fiz lipo você viu?”. Noemia tinha visto e pensou no esforço que o pobre do Geraldo faz para ganhar seu dinheiro no Ceasa “ficou bom hein, parece ter remoçado uns dez anos”. A vizinha demonstrou alegria ao ouvir isso de Noemia, pois soava verdadeiro. O café esfumaçava na pequena xícara branca de porcelana Schmidt enquanto os dedos pintados de Magali rodavam a colherinha de inox que temperou com adoçante a bebida “Noemia acho que o Gê não me quer mais, foi por isso que fiz a lipo pra ver se ele se interessava de novo por mim, mas não adiantou. Ele anda muito distante e não me ouve mais, não se incomoda com nada que eu faça. Teve uns dias que andei até dando asa praquele tal de  Marcos, mas ele é um garotão sem compromisso e logo imaginei o que seria se o Gê descobrisse. Será que descobriu? Ái meu Deus, se ele me deixar estou perdida menina, não sei fazer nada, nunca trabalhei na vida, o que eu faria sem ele?”. Noemia assistia aquilo com pesar. Conhecia há muito o Geraldo, certamente não descobriu nada, mas não via mais graça na beleza supérflua de Magali, era isso. Geraldo e Noemia eram amigos desde a infância, cresceram juntos no bairro, estudaram na mesma escola, ele vinha de uma família rígida cheia de tradição no ramo de frutas e verduras. Quando casaram Noemia e Osvaldo foram seus padrinhos. Noemia se lembra do dia do casamento, Magali parecia tão menina ainda. Em que momento da vida ela se tornou tão fútil? Ao levantar para ir embora Magali retocou a maquiagem e esguichou outra vez aquele sorriso carmim, foi desfilando em direção ao portão de madeira seu corpo lipoaspirado e vazio.

Noemia sempre soube no que iria dar o assanhamento da vizinha.
O apê dela ficava no último andar e era bem grande. Eu me senti na casa de um gigante porque as janelas eram quase do tamanho da parede e as portas iam até o teto. Mas a decoração era bem sinistra.
Na sala, tinha umas esculturas de bronze e umas estátuas de mármore que pareciam roubadas de um cemitério e os móveis antigos de madeira e as cortinas, que balançavam com o vento, me fizeram sentir num daqueles filmes de terror que assistia quando era pivete. Na parede do corredor tinha um quadro de uma mina super bonita com cara séria.
- Sua mãe? perguntei.
Leonor fez que sim com a cabeça sem olhar pro retrato.
Elogiei o apê, sem falar, claro, daqueles troços macabros que me encanaram, enquanto ela me levava pelo corredor até o quarto. Havia três quartos e ela me deixou no último, em frente ao banheiro; o dela era o primeiro; o outro, o que tinha sido da velha.
- Se quiser tomar banho fique à vontade. Tem toalhas limpas na primeira gaveta do armário. Só não tenho nenhuma roupa para lhe emprestar, disse.
- Não tem problema, eu me viro. Valeu!
- Ah, se for tomar banho, use o chuveiro. A banheira está com um vazamento.
- Beleza.
Choveu muito naquela noite,  e quando acordou, Sandrinha  não tinha muito a fazer a não ser recolher um par de brincos de argolas com pingentes de predas azuis que ainda estavam sobre o que antes era um criado mudo. À sua frente não havia mais paredes e as telhas de amianto fininhas de dar dó, caiam sobre seus pés. Gritos misturados a gemidos de dor e um ronco no estomago, faziam-na lembrar do sufoco que foi pra ajudar a retirar os vizinhos dos destroços no ano anterior. Aquilo parecia que nunca ia terminar. Mas fazer o que? Já havia perdido o emprego, a mãe, os dois irmãos mais novos e os pertences no ano passado, e agora pelo visto não teria onde passar a noite quando aquele dia terminasse.
Nunca pode imaginar que a vida tomaria esse rumo. Quando morou na Ilha dos Franceses contemplava diariamente o por do sol mais belo do litoral. Nem na Península de Maraú viu coisa parecida.  A quantidade de pássaros que visitavam o bebedouro do jardim da pousada onde trabalhou junto da sua mãe era uma coisa fantástica. Sandrinha viveu dias intensos na ilha. Estudava de manhã, à tarde fazia renda e a noite, tome a entregar pizzas por um real a viagem. Queria mesmo sendo feliz, mudar de vida. Quem não quer? Mas não pode viver este sonho por completo. Faltava conhecer o pai, tosco, grunhento e bizarro como a mãe o descrevia. Juntou dinheiro largou tudo na ilha e foi, sabendo que poderia tudo acontecer  diferente do planejado.
Enverga terno caro, pisando pouco caso sobre os sapatos lustrados. Deixa o carro com manobristas, carrega pompa e arrogância, já que a maleta deixara na rua da amargura. Abre as portas como o rei de Roma e como bom tirano passa por todos sem um único bom dia.
Senta-se à mesa cercado da mulher e dos filhos, enquadrados em meia dúzia de sorrisos que permanecem felizes apenas por um segundo. A solidão era tanta que mais pareciam senadores da oposição julgando os seus atos entre olhares de soslaio. Logo lhe vem dois ou três subalternos, quase ao mesmo tempo com os mesmos defeitos: eram incapazes de resolver aquilo sozinhos. Ao mesmo tempo tocam os telefones, clientes se aproximam e a paciência de Júlio se afasta. Seu rosto se enrubesce e sua vista se turva enquanto aquela platéia cativa se estanca à espera de respostas.
Na mesa ao lado a colega sabe o que se passa, enquanto rabisca o bloquinho de rascunhos. Acompanha a tudo do majestoso par de olhos verdes, ela e o garotão da outra agência, pendurados os dois à linha 1.
– Hoje vai ter –diz a moça, baixinho.
Tentei consertar a merda que fiz me oferecendo pra levar ela em casa. Leonor falou que não precisava, pois tava de carro. Insisti dizendo que ela não parecia bem pra dirigir enquanto eu só tinha tomado quatro cervejas. Acabou aceitando e me entregou a chave do carro.
- Caraca, véio! Você sabe o que é bom, hein? falei, quase sem acreditar, quando vi o opalão quatro portas dela no estacionamento mais boqueta que já tinha visto na vida.
“Tô indo bem com a tiazinha. Não posso perder esta chance”, pensava ao volante enquanto engatava um papo furado atrás do outro.
Tava mais tranquila quando chegamos. Morava num prédio antigo de seis andares num bairro grã-fino da cidade. Entramos direto pela garagem e eu fiquei meio perdido. Não sabia se devia cair pra dentro logo de cara e arriscar dar mais um fora ou se ia pra casa sem fazer porra nenhuma e ficar pensando no monte de coisas que devia ter feito. Só sei que era eu quem tinha que decidir porque Leonor era bem devagar.
- É isso aí, chegamos.
- É... disse encabulada.
- Acho que tá na minha hora.
- Você é quem sabe. Então, muito obrigada, falou, me estendendo a mão.
Aquele agradecimento me quebrou as pernas. Esperava que ela me convidasse pra entrar, pelo menos por educação, em vez de me despachar na maior. Assim que soltei a mão dela, vi o relógio e foi o que me salvou.
- Pô, que horas são?
- Meia-noite e quinze.
- Puta merda! Não tinha reparado nas horas. Perdi o último busão.
Leonor ficou muda, parecia que não tinha entendido, acho que nunca precisou pegar um ônibus.
- Já era! Vou ter que ficar na rua, falei, dando um tapa na coxa de raiva.
- Se quiser, pode dormir em casa hoje.
Caminhava devagar pela calçada de pedras justapostas, seus pensamentos corriam a mil. Eram tantos compromissos marcados para o dia seguinte que Noêmia temia não cumpri-los.

Tinha a venda de um super imóvel bom na zona sul, pertencente a um proprietário exigente e ganancioso. Haja paciência!

Mas antes deveria ir ao cabeleireiro, hora marcada para não perder tempo. Tinha que pintar a raiz dos cabelos que já gritavam sua idade avançada. Ia aproveitar para depilar as axilas e fazer as unhas. Mulher é assim mesmo – pensava ela.

Lembrou-se de súbito de Leonor, sua vizinha. A coitada perdeu a mãe há pouco tempo e parece que ficou um pouco perdida. Ontem se encontraram por acaso na fila do banco e marcaram para amanhã um bate papo com cafezinho, a moça “precisava conversar um pouco”. E é verdade, ainda tinha que “encaixar” a Leonor no dia de amanhã. Ficou pensando na vizinha que andava macambúzia, sem amigos nem namorado, trabalhando dia e noite naquela loja de antiguidades. Herdou do pai a loja e o compromisso, que ela firmou consigo mesma, “vou manter o negócio da família”. Nunca viajou a coitada, e como viajar com uma loja que abre de domingo a domingo? Meu Deus, como essa moça vai se ajeitar na vida desse jeito? Noêmia estava preocupada com a vizinha, outro dia quando estava indo levar um cliente para ver um casa comercial, a viu bebendo sozinha no Bar do Barba, e lá isso é lugar pra moça de família se enfiar sozinha? Quem sabe a convide para um videokê qualquer noite dessas, pra mim funcionou, foi a música que me tirou da dor de perder meu esposo – pensava Noêmia enquanto tentava encontrar na bolsa o celular que tocava insistentemente.
Tive que dar um migué quando ela quis saber mais sobre mim.
- Sou motorista, mas, no momento, tô parado.
- Hum, hum.
Antes que me perguntasse mais alguma coisa, falei de estalo:
- Já foi casada?
Ela pipocou, mas respondeu:
- Não.
- Nunca conheceu alguém legal?
- É...
Ficou pensativa como tava antes de eu chegar e saquei que aquela não era toda a história.
- Quer dizer, conheci, mas mamãe nunca aprovou minhas escolhas, desembuchou.
- Ah, sei. Você confiava nos palpites dela.
- Acho que sim, disse, baixando a cabeça meio envergonhada.
- Deve tá sendo f... quer dizer, uma barra pra você.
De repente, Leonor levantou a cabeça, os olhos meio vermelhos, e começou a chorar.
- Preciso ir para casa.
- Claro, claro, mas fica fria. A gente vê isso, a gente vê isso.
Me senti um otário por ter estragado nossa conversa quando perguntei da velha. Não tinha nada que falar da dita-cuja. Tava indo bem, tinha conseguido saber várias paradas da vida de Leonor e tudo ia pro saco por minha culpa.
Outro dia. Mesmo ponto de ônibus à espera da condução rotineira e de novo da visão daquele tamanco de sola de cortiça. Após portas e mais portas batidas no nariz durante o dia, e o sol queimando-lhe os poros, Antero enfim chaga na hora mais esperada do dia. A esperança de vê-la e quem sabe, puxar uma conversa boba, fez o dia demorar mais a passar. No ponto a mesma senhora com a bolsa de tecido amarrotada, o mesmo tiozinho vendendo seus doces num tabuleiro improvisado e a turma de adolescentes que acabara de sair da aula. Quando Sandrinha aparece, Antero antecipa o pensamento e segue em direção à padaria, antes mesmo de ter a certeza se a moça iria pra lá também. Segue em frente, diminui as passadas que antes largas tornaram-se lentas e curtas. Antero seguia a moça pela frente. Ela nem desconfia. A comanda é entregue pelo funcionário. Ele para, olha os doces na vitrine e espera que Sandrinha se dirija ao balcão.
- E aí Bigode?
- Sandrinha...
- E o figurão da TV? Vazou?
- Nem apareceu. De tanto que bebeu ontem, e com todos aqueles pedaços de pizza que comeu, o fígado do cidadão deve de estar daquele jeito.
- Só é!
- Vai de que hoje?
- Guaraná...
- Com uma rodela de laranja e gelo?
- Só é!
- Num muda né figura? Vai dizer que vai no banheiro.
- Ê Bigode! Tá adivinhando?
- Todo cê faz isso. Pede a bebida e vai pro banheiro.
- E tu fica olhando minha bunda né?
- E num é?
- Bigode!
- Vai lá vai, que eu vou pegar o teu refri.
Antero sentado do lado da Sandrinha sem que ela tivesse percebido, pede um iogurte batido e puxa um papel qualquer da pasta de lona. Disfarça e começa ler com os cotovelos no balcão.
Passou o resto da manhã tentando associar a frase com algum livro, ou ainda mais ousadamente com algum escritor. Ela tinha um vasto conhecimento de literatura, mas era petulância demais achar que com uma dúzia de palavras de uma frase lida a esmo pudesse chegar a algum lugar – era também racional demais tal tentativa, muito mais humano seria simplesmente encarar a frase solitária e sua significância nesse contexto, mas pensar, para ela, era uma linha tênue entre razão e emoção. Talvez se rendesse a uma pesquisa na internet mais tarde, mas agora diante da telinha quadrada e brilhante ela resmungava, “mas que droga, o Banco novamente não resolveu os descontos”. Ergueu mecanicamente o braço esquerdo em direção ao telefone, discou mecanicamente o número do Banco, e mecanicamente foi aguardando as infindáveis transferências, sempre repetindo mecanicamente palavras como “cobrança” “indevida” “novamente” “valores” “desconhecimento” “falta” “atenção” “urgência” “resolver”... num ritmo compassado ela foi ouvindo o pingar, pingar, pingar “aguarde” “momento” “transferi-la” “não” “aguarde” “conferência” “momento” “transferi-la”... Com a voz alterada cortou a sequência com uma espécie de ameaça fajuta “fechamento da conta”.
Salve Júlio César, nome de imperador, corpo de atleta, espírito de porco; esticado à cadeira de sol, óculos escuros e o trabalho de anos boiando à beira da sua piscina. Trança os dedos das mãos sob a nuca, massageia um pé no outro e suspira às avessas, como se expirasse um encargo de deboche.
Quase pega no sono outra vez, o calor firmando por cima do guarda-sol, entre o relaxo e o despacho. Num lapso ainda pula no meio de gráficos, duplicatas e estatísticas de desempenho da empresa. Bate os pés bonachão sobre a lista de inadimplentes e afasta blocos e certificações como se estivesse nadando. Pelo outro lado sai ileso; talvez uma anotação enroscada às costas.
Caminha tranqüilo pingando o short de dormir e, sem calçar o chinelão, vai-se carro adentro e garagem afora. Larga a casa aberta, sai sem a carteira e sem o celular, apenas com um riso sarcástico no retrovisor, como se nada lhe pudesse atingir. Alimenta-se de sossego pelo caminho. O que quer que lhe ocorra de preocupação passa de uma esquina para outra, o que ele faz questão de atropelar. Anda quase toda a manhã, ele e Beethoven, descalço e sem destino pela cidade, como se fosse um adolescente desfilando com o carro do pai.
Volta para casa enfim quando a fome bate de frente, parando atrás do carro da mulher quando o portão se abre finalmente. Tem o tempo de desligar e descer para que venha ela à queima-roupa, expressão de angústia, vociferante:
– Você enlouqueceu, Júlio?
Enrolou-se desengonçadamente no lençol e foi até o banheiro. Na penumbra seu reflexo no espelho lhe rendeu uma boa sensação, toda imagem era multitransformável às 5horas da manhã – e para ela a manhã era sempre um grande banquete de vida. Em menos de 15 minutos estava completamente inteira no meio da rua, abrindo as janelas da mente que começavam com partes do sonho e desmembravam-se em outras tantas coisas desconexas e glamorosas. O ônibus pela manhã lhe parecia um vasto mundo dela mesma, milhares e milhares de variações de uma vida, a criança de ontem, a mãe de alguém parecia com a mãe de outro alguém, o idoso de amanhã, o rapaz estudando era uma transmutação, o outro rapaz dormindo era um presente, a moça perdida não lhe era estranha, o motorista era novo, o trajeto era novo também, a chegada era sempre a mesma. Tentava ler um trecho no livro de uma passageira “E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem? ...” quando hesitou por um instante no último ponto da Avenida D, mas por fim o seu eu automático já estava ligado e levou-a embora do banquete diretamente para o vazio das quatro paredes que dão valores aos espaços.
Meses depois ela esperava pelo cliente da imobiliária em uma casa vazia que estava à venda, enquanto devorava um Arthur Conan Doyle e fazia anotações na caderneta. Fazia as correspondências do caso tal qual Sherlock tentando chegar ao assassino antes do detetive. Já passava das dezenove horas quando a campainha soou e ela foi abrir a porta. Lá estava Leo com seu alinhado e impecável terno, com o costumeiro perfume que ela bem conhecia. Noemia estremeceu de novo. Ele sorriu surpreso, mas tratou de se voltar para a realidade chamando Rosana que ainda estava no carro:


— Venha querida, venha ver a casa que será nossa. Espero que goste! – e estendeu a mão para uma mulher bonita de trajes finos e delicados que seria sua esposa, posição que Noêmia rejeitou um dia.

Leo percebeu que Noêmia já tinha superado a separação e que mantinha o hábito pela mesma leitura, e comentou:

Vale do medo é um ótimo romance! Doyle usou a mesma técnica em Um estudo em vermelho. Se não leu, leia, pois estou certo de que vai apreciar o desfecho - disse ao se despedir acrescentando – “foi um prazer revê-la saudável e com brilho nos olhos”.

Ele sempre observador, não parecia ter mudado. Mas ela sabia que agora seria Rosana que iria dividir com ele a esteira listrada na praia de Ubatuba.

Desce a escadaria de madeira pisoteando a cabeça de um e de outro, o olho ardendo ou de raiva ou de sono. Dá num ambiente da sala de visitas e escolhe a cadeira de balanço para fugir do café da manhã sozinho.
Senta-se. Recosta-se. Respira fundo e só não cospe um pranto entalado na garganta por que homem não chora. Prefere gritar para dentro e gesticular para ninguém. Prefere deixar o pensamento chutando as cadeiras e arrancando as cortinas que balançam suaves com a porta de vidro entreaberta. Prefere levantar-se e se jogar na piscina de short e tudo e escorrer pelo ralo quadrado e cheio de furinhos. Mas só bóia. Bóia a alma, por que o diretor geral, o estagiário, os subalternos, o mecânico da oficina e a ameaça de demissão pularam dele para a água e, de tão pesados, afundaram todos juntos. E o corpo, leve, flutua entre o nada e as bordas com azulejos Portobello.
Fica ali sob o sol forte, o corpo meio submerso, a alma para cima, a vida para baixo. Tem vontade de sair e molhar a casa toda, sentar ao volante pingando, sem lenço nem documento, e dirigir descalço, com o braço para fora feito playboy, sem cinto nem óculos escuros. Tem vontade de passar todos os sinais vermelhos, cruzar as avenidas à toda brida e ganhar um ingresso para outra existência, menos controladora.
Tem vontade, mas não vai. Sai da água de mansinho e se estica na cadeira do guarda-sol até o mormaço secar-lhe as gotas de cloro. Levanta-se e calmamente segue à cozinha, onde se serve de suco de laranja e dos brioches sobre a mesa; sobe e desce as escadas com a maleta da agência nas mãos, senta-se de volta à cadeira, retira a papelada e os documentos separados por ordem de urgência e os atira todos à piscina num único impulso.

Cotovelos já não mais descansavam sobre a pasta de lona e agora sobe os degraus do coletivo espionando a dama por cima da cabeça do cobrador.

Enquanto ele se vai na expectativa de revê-la em outro dia, ela atravessa correndo a rua, ultrapassa os limites da praça sem verde entra ritualisticamente na padaria e senta ao lado do figurão da TV que dava entrevista tomando café no balcão de mármore chique.

- Vai querer o que hoje Sandrinha? - perguntou desinteressado o balconista.

- Guaraná com uma rodela de laranja e gelo. Puta calor hoje né?

- Num tá fácil.

Olhou mais curiosa pro lado e percebeu que dessa vez o figurão da não estava tomando café. Voltou-se ao balconista.

- Bigode, o que deu nele hoje?

- Sei lá. Já comeu cinco pedaços de pizza e tomou quatro chopes.

- Então tá! Num dá pra entender gente essa gente da tv. Cada dias eles tão numa diferente. Cê já viu a roupa que esse povo usa Bigode?

- Tudo esquisito né?

- Só é! Bota aí o guaraná que eu vou fazer xixi.E saiu a Sandrinha de novo descendo o indicador e o polegar na altura da bunda.
- Dá licença?
Mesmo me vendo chegar, ela tomou um puta susto. Não tava esperando que eu puxasse conversa. Deu um pulo na cadeira segurando o peito.
- Opa, foi mal aí, não queria assustar você.
- Não, não foi nada. Eu é que tava distraída.
- Sei. Tá esperando alguém? perguntei, puxando a cadeira.
Não tava e me deixou ficar, apesar de me olhar meio desconfiada. Chamava Leonor e, aos poucos, foi se soltando quando viu que eu era firmeza. Nem precisou falar muito pra eu ganhar a fita: era uma mulher insegura e carente. Falava sobre um monte de coisa ao mesmo tempo, sempre simpática, só queria companhia e, quem sabe, um cara que nem eu, que pudesse resolver o seu problema.
Disse que era dona de uma loja de antiguidades. “Legal, ouvi falar que isso dá um bom dinheiro”, pensei. Morava sozinha, a mãe tinha morrido uns dois meses antes. Era filha única, tinha feito Direito, mas nunca foi advogada porque não tirou uma carteira ou, sei lá, um troço que não entendi muito bem. Desde menina tinha ajudado o pai na loja e assumiu o negócio depois que ele empacotou, pelo que falou, há uns quinze anos.
“Rica, coroa e sozinha”, pensava, sempre rindo, bebendo e fumando enquanto dava mais corda em Leonor . “Sorte a sua, dona, ter me conhecido antes de outro espertão”.